Wednesday, March 2, 2011

Chegam as férias e corro para o gelo impiedoso da serra. Adivinho-o ao ver o brilho da neve por entre as negras fragas da montanha. A lâmina do vento ligeiramente romba onde o sol chega. Caminho devagar pelas ruas onde cresci. Aqui andava de bicicleta, trinta metros de recta alcatroada, uma volta no largo de terra batida, na altura rodeado por uma cerca de madeira pintada de branco. Ao alto, dois degraus de pedra onde costumavamos sentar-nos, em serões perfumados de Verão, eu tinha medo das carochas e do que via nos teus olhos quando repetíamos "morte sangue espíritos caveiras garras caixão". Mas a minha casa tinha uma cerejeira grande mesmo em frente, roseiras, narcisos em Fevereiro, um pessegueiro de jardim e uma japoneira de folhas lustrosas e camélias tardias como eu. Atrás, frente à janela do meu quarto, arredondavam-se pêssegos aveludados e a pereira do canto carregava-se, no Outono, de frutos compridos e escuros, que se desfaziam ao toque da língua. Nesta época, amanhava-se a terra para as sementeiras e os pássaros acorriam em busca de vermes retorcidos.
A minha casa foi vendida. Virão outros habitá-la, enchê-la novamente de vida. Cinco crianças, segundo soube. Talvez se chamem Marta, Zé, Filipe, Miguel, Pedro, António. Talvez haja uma Suzy de cabelos louros. Talvez descubram os segredos que escondemos em frestas de muro, talvez não se assustem com as carochas e roubem a fruta dos vizinhos e façam chover ao agitar as árvores. Talvez alinhem garrafas sobre o muro para afinar a mira das fisgas. Talvez matem um cão, sem querer. Talvez sejam tão felizes como nós.

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