Wednesday, December 13, 2006

Em todas as ruas te encontro

Em todas as ruas te encontro
Em todas as ruas te perco
conheço tão bem o teu corpo
sonhei tanto a tua figura
que é de olhos fechados que eu ando
a limitar a tua altura
e bebo a água e sorvo o ar
que te atravessou a cintura
tanto, tão perto, tão real
que o meu corpo se transfigura
e toca o seu próprio elemento
num corpo que já não é seu
num rio que desapareceu
onde um braço teu me procura

Em todas as ruas te encontro
Em todas as ruas te perco

Mário Cesariny

Thursday, November 23, 2006

Impetuoso, o teu corpo é como um rio
onde o meu se perde.
Se escuto, só oiço o teu rumor.
De mim, nem o sinal mais breve.

Imagem dos gestos que tracei,

irrompe puro e completo.
Por isso, rio foi o nome que lhe dei.
E nele o céu fica mais perto.



Eugénio de Andrade

Wednesday, November 22, 2006


A religião deixou de fazer parte da minha vida há meses. Deixei de acreditar nos “mensageiros” da suposta palavra de Deus: a igreja começou a parecer-me uma máquina de pura propaganda de ideias meramente humanas: espalhando a necessidade do sofrimento como redenção para os pecados de gente simples, que nunca prejudicou verdadeiramente ninguém. Anunciando uma recompensa pós-mortal a quem na terra suportar resignadamente a cruz que o Deus misericordioso lhes entrega para que possam salvar as suas almas conspurcadas do fogo do inferno. E tudo isto me parece ridículo e até cruel: é como enganar uma criança, prometendo-lhe doces se não sair para a rua. Com a única diferença de que a igreja não está a proteger ninguém de uma ameaça real ou possível, pretende apenas impedir-nos de nos descobrirmos a nós próprios, a nossa própria dimensão humana e imperfeita e complexa, que insistem em confundir com uma personagem chamada Satanás.

Faz-me pena ver essa gente que se arrasta por essas estradas, a caminho de Fátima, para ensanguentar os joelhos numa longa via sacra, que os livrará dos seus problemas por expiação das suas faltas, cometidas nem eles sabem contra quem.

No entanto, nunca pus a existência de Deus em causa: simplesmente, o Deus em que acredito não é o mesmo. O meu Deus vive em mim e em todos os seres e não cobra a ninguém o preço de uma felicidade eterna: ela não se conquista com uma vida de aceitação, mas de luta, não se atinge como compensação do sofrimento, mas como recompensa pelas tentativas de se ter uma vida feliz. O meu Deus não aprecia sacrifícios humanos no Seu altar: prefere ver que os homens que integra souberam ser felizes no mundo maravilhoso que lhes foi dado.

Eu não quero ser católica por tradição: prefiro não ter intermediários e lidar directamente com o meu Deus. É por isso que continuo a falar-Lhe antes de dormir.

Sunday, November 19, 2006


“Sísifo

Recomeça...
Se puderes,
Sem angústia e sem pressa.
E os passos que deres,
Nesse caminho duro
Do futuro,
Dá-os em liberdade.
Enquanto não alcances
Não descanses.
De nenhum fruto queiras só metade.

E, nunca saciado,
Vai colhendo
Ilusões sucessivas no pomar.
Sempre a sonhar
E vendo,
Acordado,
O logro da aventura.
És homem, não te esqueças!
Só é tua a loucura
Onde, com lucidez, te reconheças.”

Miguel Torga

jazz


Se fechar os olhos e sorver um solo de saxofone, se deixar o ritmo voar da pauta de mim, consigo evadir-me. Diluir-me… Esvair-me em som de areia preguiçosa nas ondas. E transformo-me, por uma fracção de segundo, no tudo e nada que quero ser. Sou livre do eu que me escraviza… sou a origem remota do jazz, sou alma negra e quente de piano e de sol, de sul, de soul.

Shhh… Sonolência. Cedo ao sono e ao sonho. E serei mais eu quando acordar e perceber que, se fechar os olhos, os meus sentidos são capazes de me transportar até onde eu quiser.