Monday, January 11, 2010

bridge over troubled water


foto de marta, serra da estrela

Saturday, January 9, 2010

Balada para um louco

Vejo-o quase sempre percorrendo os passeios sujos da rua onde trabalho. Vem sempre com a companhia da garrafa de vinho debaixo do braço, a cabeça de lado, passos cuidadosos para não entornar os olhos a transbordar aguardente.
É baixo, magrinho, tem a pele negra e os olhos húmidos e amarelos como a lua em certas noites. E quando pára descansa sempre a cabeça na mão, a pensar na vida. Provavelmente levou a vida toda a pensar.
Ontem estava ao balcão, quando entrei no café. Esperava pacientemente que lhe trouxessem um fino. E olhou-me tão de cima, com um sorriso cerrado de tanta condescendência, quase pena, que senti de repente que a louca alcoólica era eu.
_ João, chamou-lhe a empregada do café.
Mas João não pode ser o seu nome, fica-lhe grande. Para lhe servir, seria preciso fazer as baínhas. Mas fica assim, um nome emprestado, a facilitar contas. E a nome emprestado não se olha ao tamanho.

Friday, January 1, 2010

As espécies que não evoluem

Quando se relembra Darwin e o seu trabalho sobre a origem das espécies, gostaria de dizer que a secção de senhora da Zara é talvez a Galápagos das espécies de clientes.
Sendo que as mais interessantes são:

A pita-tia: tem 15 anos mas já não vê a própria pele desde os 12. Gasta embalagens de base Chanel à velocidade com que eu como pacotes de bolachas do Lidl. Em regra, tem uma coloração loura e a carteira com uma mesada que excede o meu ordenado. Raramente têm um comportamento antipático: tratam-nos com a mesma condescendência que têm para a empregada que já vivia lá em casa quando nasceram e lhes tira as graínhas das uvas.

A velha-pita: Inconfundível. Tem 50 anos mas veste-se como uma adolescente: mini-saia de ganga, botins azul-eléctrico, top de estampado leopardo, maquilhagem exuberante e ganchos coloridos a segurar as madeixas louras do cabelo. Quando entra, passa a correr pela área onde talvez devesse escolher roupa e dirige-se logo ao Trafaluc para ver o último modelo de legging com lantejoulas. No fundo, são como a Lili Caneças: quanto mais fazem para parecer novas, mais idade os outros lhe dão...

A cota-brasileira: Vem louquinha porque nu Brasiu a roupa é muuuito mais cara! Leva 100 peças para o provador e fica duas horas provando tudo e pedindo tamanhos e opiniões, muitas vezes com a cortina aberta sem se importar com o facto de ter a bunda reflectida em todos os espelhos, à vista de toda a gente. No final, larga metade em cima da mesa, explica detalhadamente porque não leva aquelas peças e pergunta se em Pórtugau a gentxi tem beibi dóu. Explica o que é beibi dóu (baby doll) e sai. Na caixa, explica à caixeira porque leva cada uma das peças, tudo é uma gracinha, mas acaba por rejeitar mais 2/3 à última da hora.

A marido-dependente: Entra na loja quase sempre aparentando estar sozinha, com os sacos das compras e duas crias à porrada, mas o marido vem logo uns metros atrás, disfarçado de desconhecido, a galar os rabos das outras clientes. Ela escolhe o que lhe parece que vá agradar ao macho, mas basta ele dizer que não gosta para ela pôr logo de lado, ainda que seja perfeito/lhe fique bem/seja uma pechincha mesmo boa. No máximo compra um casaco de malha cinzento, com botões até à boca, para usar debaixo do avental.

A boazuda: Mal passa a porta, causa logo transtorno: são os maridos das outras a olhar, são os funcionários da loja a tropeçar no mobiliário, e elas a sacudir o cabelo como se não reparassem. Experimentam apenas coisas XS, mesmo que tenham 1,75m, as mamas da Pamela ou o rabo da Beyonce. Podem as costuras rebentar, quanto mais coleante, melhor. E já se sabe: na hora de pagar, lá vem o toino do namorado, com o cartão dourado pronto.

A obesa: Por cruel que seja, a obesa está na Zara fora do seu habitat, que é a C&A. A gente faz de tudo para as ajudar, mas é inútil: as calças só vão até ao 46 (nos modelos para as velhas) e é um 46 inacreditavelmente pequeno. Acabam sempre a queixar-se de que só fazem roupa para magras e nós a encolher os ombros, a dar-lhes razão, a deitar as culpas no Ortega. E a sugerir educadamente a C&A.

A magricela: Não se riam as que nasceram com genes magrinhos (eu). Porque as muito magras também estão feitas ao bife. É sempre preciso apertar as cinturas das calças de tamanho 34. Vestem um blazer e parecem um cabide. E quando a roupa chega aos saldos, já não há tamanhos pequenos, porque a boazuda levou tudo.

A noctívaga: Só vem à loja depois das 23h30m porque gosta de escolher as coisas quando já não há quase ninguém, todos os funcionários estão disponíveis para ela, e a roupa está arrumadinha e organizada por tamanhos. Tem especial preferência pelos dobrados que demoram mais de 10 minutos a fazer e um dos seus passatempos preferidos é percorrer as paredes com as mãos, puxando o que lhe parece melhor. É mestra em ignorar os olhares assassinos de quem arrumou aquilo tudo e vai sair mais tarde por causa dela. Ah: e nunca compra nada.

A reclamadora: Espécie barulhenta, que gosta de dar escândalo e provar a toda a gente que ali só trabalham incompetentes. Reclama se tiver que esperar mais de 5m para pagar. Reclama se um casaco branco estiver sujo. Reclama se um vestido tem o fecho estragado. Reclama porque as calças têm uma costura torta. Reclama porque os provadores estão todos ocupados. Reclama porque a porta apitou quando ía a passar. Reclama sempre em altos berros. Reclama se não pode trocar roupa porque já passou o prazo. Reclama porque se esgotaram os embrulhos. etc etc etc.

E por fim, a mítica...

A abominável-cliente-que-rouba: Nós nunca a vemos, porque ela é a mestra do disfarce e da camuflagem: deixa para trás o rasto dos alarmes ou uma mesa vazia e ninguém sabe dizer quem foi. É ela o assunto de todas as reuniões de trabalho e a razão pela qual nós, funcionários, parecemos cães de caça. E no dia em que a apanharmos...