Wednesday, June 25, 2008

Conversa de circunstância


(Rebeca Waller)


Primeiro entrou ela, o cabelo branco de algodão e a gordura do corpo, a contrastar com o fato de treino e os ténis.
Na paragem seguinte, ele. Subiu a custo os degraus, as costas sempre direitas, a bengala na mão esquerda. Ao vê-la, cambaleou um pouco ao longo do corredor para acomodar no banco ao lado a sua excessiva magreza.

Ela: vou agora para a ginástica! É na piscina do hospital. Aquilo faz-me mesmo bem, saio de lá como nova!
Ele: quando a minha neta era pequena, corria para o meu colo e pedia-me que lhe contasse histórias. Agora já não faz caso de mim...
Ela: a sua neta é uma mulherzinha, tem 15 anos, já não quer histórias. Mas você tem a sua mulher, não está sozinho.
Ele (o olhar a defender-se do entusiasmo dela): a minha mulher... se ao menos me ouvisse... se eu ainda tivesse mão para pintar. Dantes pintava. (as mãos rugosas, os dedos curvados sob manchas castanhas, desenhando nuvens no ar) Agora não tenho dedos para pegar nos pincéis. Não tenho firmeza para desenhar sem tremer. Eu já pedi a um médico que me fizesse a eutanásia... Mas ele não quer...

E eu no banco de trás, ainda cega da luz da manhã nas fachadas dos prédios, a chorar por dentro e a lembrar-me do Bailote da "Aparição", que já não tinha mão para semear e se enforcou.

5 comments:

José said...

Mas tu tás a enlouquecer?

marta said...

Para sua informação, esta conversa não foi ficcionada por mim. Aconteceu e eu limitei-me a relatá-la. Seu maníaco!

José said...

Como deve calcular, até em percentagens, a doença não reside no facto de ficcionar conversas. A doença inside na circunstancia de andar a ouvir conversas alheias. O que significa apenas uma coisa: não há nada de estimulante a acontecer na sua existencia e tal é, com enorme probabilidade, consequencia da inércia provocada por, ao escutar temas de terceiros, não estar a criar os seus.

José said...

ou então não

marta said...

Sou obrigada a dar-lhe razão... Afinal, esta tendência de escutar conversas alheias é de facto algo novo para mim. E o José bem sabe, que tão bem me conhece, que eu sou pessoa discretíssima que NUNCA ouve/se interessa/relata conversas alheias. E o José também não, verdade?...
:D