1958

Foi de manhã. Sentei-me e pedi o costume: um café e dois pasteis de nata. E agarrei um exemplar do "Diário de Coimbra" abandonado na mesa ao lado. Não sei qual o número da edição. Nem a data. Mas sei que o que li, numa dessas secções dedicadas à opinião dos leitores, me fez pensar que tinha regressado no mínimo a 1958... Num texto pejado dessas figuras de estilo pegajosas, que insistem em ligar a nossa vidinha terrena ao Supremo Senhor do Céu e da Terra e em comparar as criaturas a astros, o autor dizia, basicamente, que a esposa é o sol da família. A esposa decente, discreta, honrada. A esposa que suporta todas as insuficiências, humilhações e trabalhos com a resignação digna de mãe e mulher, nascida com a marca do dever de tornar a vida do marido e dos filhos o mais agradável possível. Oh, divina missão, a que Deus a consagrou e que tantas vezes menciona a Sagrada Escritura... Ter o jantarinho feito quando o estupor do marido chega a casa do trabalho (como se a mulher não trabalhasse tanto ou mais que o homem, fora de casa), a roupa lavada, as camisas impecavelmente passadas, os filhinhos lavadinhos e educados na fé cristã. E, está claro, baixar digna e humildemente a cabeça às ordens e repreensões e (porque não?) castigos do homem que a ama, como manda a Santa Bíblia.
Que pena ser de manhã. Que pena não me ter ficado nem a data do jornal nem o nome do piedoso autor. Mas a esse, que Deus, se existir, se digne perdoar tanta estupidez...