Sunday, August 3, 2008

Cartas a uma ditadura


A RTP2 decidiu presentear-nos e celebrar o aniversário da queda do Sr Presidente do Conselho com a exibição do documentário "Cartas a uma ditadura", de Inês de Medeiros. A realizadora conversa com mulheres que, em 1958, responderam a uma circular tendente a criar um movimento feminino de apoio à Pátria e ao Regime. Todas manifestavam, à época, a gratidão e admiração pelo ditador. Hoje, confrontadas com os fantasmas do passado e com o que escreveram, algumas dizem apenas que "não se lembram". Ou que não querem lembrar. Ou que não tinham consciência do que escreviam, porque não sabiam nada de política.
As excelentíssimas senhoras, actualmente acomodando as rugas nas poltronas das casas que herdaram do pai, na linha de Sintra, com as "mulheres a dias" a atravessar silenciosamente os espelhos, dão um testemunho do que era a vida das privilegiadas da época: eram mulheres ideais. Esposas, mães, mulheres de caridade e boas cristãs. Podiam ficar em casa e não trabalhavam: o dinheiro que o chefe de família ganhava num bom lugar de um qualquer ministério ou a explorar uma fábrica cheia "desses que se revoltavam" chegava bem para as madames poderem, nos intervalos do governo do lar e da educação do filhos, tantas vezes entregues às criadas, dedicar-se ao serviço do país: uma vez por mês vestiam-se de forma simples e desciam à Curraleira, levar aos pobrezinhos o pão da caridade, com a mensagem cristã e salazarista dentro. De vez em quando, um extra: metiam-se no seu carro com chauffer para irem a uma aldeia escondida, convencer a mulher que fugira à violência de um marido alcoólico, a ser uma esposa como deve ser e voltar para casa. E, antes da teatrada das eleições presidenciais, as dignas senhoras serviam-se dos seus conhecimentos para recensear apenas votantes "de confiança" e cortar das listas as ameaças à sua estabilidade e das suas famílias.
Algumas admitem-no, outras não. E tudo isto por sobre as imagens das verdadeiras mulheres portuguesas: as camponesas, as operárias, as criadas de servir, que trabalhavam dia e noite para alimentar os filhos. Essas sim podem dizer sem mentir: eu não sabia o que era a política. Eu não me lembro de escrever essa carta (como poderia, se nunca entrei numa escola?). Eu não tinha outra preocupação que não fosse a de pôr pão na boca dos meus filhos. Tudo o que queria era que não viessem a ter uma vida miserável como a minha.
As mães precocemente envelhecidas pelo sol das searas e das vinhas e das noites sem sono, a pensar nos filhos, tão longe, no "ultramar", a defender o que nunca seria deles. Desses rostos não chegaremos nunca a ouvir nada, senão as lágrimas engolidas a preto e branco.

Que cartas escreveriam elas, se soubessem?

1 comment:

José said...

escreveriam cartas remetidas à minha pessoa, dando glórias pela reabertura do tasco!