Thursday, August 14, 2008

Aguarela


"Lisboa é uma cidade submersa, senhor, a água fecha-se sobre as nossas cabeças, as nuvens não passam de bancos de limos que flutuam, os manequins dos alfaiates são sereias sem cabeça, fardadas de terilene ou cheviote e sublinhadas a giz no lugar das entretelas. E acima disto tudo, meu caro, intacta, límpida, pura, a uma distância difícil de conceber e de medir, acima do coral dos telhados, das grutas de caranguejos das ruas e dos paquetes dos mosteiros, do mistério de algas das árvores e da profundidade de congro das caves das viúvas, com a tristeza amortalhada nas flores de cera dos noivados defuntos, acima disto tudo, amigo escritor, (...) serpenteando sem lhes tocar, em redor das antenas de televisão e das chaminés das fábricas, das ruínas do Castelo e dos bairros habitados por canários, contínuos e majores, a Via Láctea que foge de nós para se fundir com a terra para as bandas de Alverca, onde o rio se transforma em labaredas de siderurgia e fábricas de cimento."

António Lobo Antunes, A ordem natural das coisas

No comments: