Friday, January 21, 2011

Purificação

Vivia numa quinta por cima da dos meus avós. Sempre lá viveu e continua a viver, até hoje. Mesmo que já não em forma de pessoa, mas de chão ou arbusto ou rochedo. Era uma mulher maciça mas ágil, tinha a compleição forte de quem arrancou à terra tudo o que precisou para viver e no rosto as marcas do nascer do sol e de uma sabedoria ancestral, que transcendia tudo. Conhecia a lua e as suas influências, parecia capaz de falar com os animais e as curvas dos caminhos, foi ela quem me ensinou que os lagartos subiriam um dia pelas minhas pernas, sedentos de sangue, sabia histórias verdadeiras de bruxas e almas e gente boa que era ponte entre este mundo e o outro, e a voz dela continha serra, rochas, neve, rosmaninho e figos maduros. Um dia, vendo-me comer deliciada um queijo fresco, declarou-me que o tinha feito com as mãos cheias de sangue. E era verdade, como tudo nela. Sangue e coração e afecto e flor de cardo, à mistura com o leite, a escorrer com o soro pelos orifícios do acincho.

Mas o que recordo com mais saudade foi o dia em que, pela festa de Setembro, Purificação foi à quinta da minha avó bater os bolos. Quilos de massa num alguidar de esmalte, a exigir a mesma força que é precisa para cavar a terra pedregosa daquele chão avarento. E as mãos dela lá dentro, fortes, quadradas, cheias de sulcos negros. Nada mais limpo e mais puro. O negro da terra já fazia parte dela, não sairia nunca. Purificação transformava-se já em chão, arbusto, rochedo. O sangue de que tinha as mãos cheias era o mesmo que o que escorria das cabras quando as matavam, ou o que escorria dos pinheiros quando lhes golpeavam o tronco, ou o que me escorria pelas pernas, ou o que escorria pelas entranhas da serra e o povo bebia das fontes e das minas e matava a sede dos animais e fazia crescer as plantas.

Nesse Setembro, foi tudo diferente. Entendi a Purificação.

2 comments:

Anonymous said...

A Purificação, os bolos... aquela casa continuará sempre viva nas nossas memórias!!!
E o cheiro da castanha assada em folhas de paginas amarelas também nunca será esquecido!
=)
muito bom o texto prima*
(Inês)

marta said...

Obrigada, linda! Que bom partilhar isto contigo... fizeste parte de tudo. Beijinho