No final de uma viagem tão rica em paisagens de Outono que quase me obrigavam a parar (o nascer do sol é tão belo depois de tantos dias de chuva), fui obrigada a esperar cerca de 1h no átrio de um tribunal de província e senti-me metida num quadro que podia ser da Paula Rêgo, tal era a variedade de personagens maravilhosamente feias.
Havia velhos e velhas, muitas velhas, todas iguais como são as serranas, de cabelos curtos, oleosos, as mãos encardidas do trabalho de muitos anos, adornadas com a pulseira do reumático. Quase dá para lhes adivinhar toalhas de plástico a imitar renda holandesa em mesas redondas e não me surpreenderia se tivessem trazido cães de loiça pela trela. Via-se logo que ali estavam por causa do terreno de algum vizinho: são velhos como os caminhos, nasceram no tempo dos marcos de pedra e dos castanheiros pequenos. Nesses tempos, resolvia-se a querela com bengaladas ou uma foice na cabeça. Não havia paciência para esperas intermináveis que acabam em adiamentos.
Entre eles estava um homem alto, corpulento. Dizer que a barriga é proeminente é pouco: e sobre a barriga redonda, em azul e vermelho, um losango gigante em malha, cruzado a meio por duas linhas amarelas, a marcar o centro do alvo. E eu a olhar para ele a apetecer-me um arco e uma flecha para treino de pontaria.
Do lado oposto, dois adolescentes namorados, com cara de quem tem a idade dos caminhos e dos marcos de pedra e dos castanheiros. Ela é baixa mas espalhafatosamente gorda, usa calças dos bombeiros, com tiras reflectoras, e uma camisola comida da traça. Ele é um franguito com aspirações a grande motard, um James Dean dos montes, raquítico, o cabelo todo puxado para trás à força de gel, uma barbita rala e uma única sobrancelha sobre os olhos piscos. Ao lado senta-se uma figura metade mulher, metade porco: pergunto-me como terá conseguido meter uns pés tão gordos nuns sapatos tão pequenos.
Mas a personagem central é o Ilustre Colega, Ex.mo Sr. Dr. Forcado. Baixito, quase atarracado, estica quanto pode o pouco pescoço que tem, semi-cerra os olhos como se focasse a imagem do touro na outra ponta da arena. Barriga para dentro, peito para fora, ombros para trás, mãos na anca "Eh touro lindo!"
Ridículos, feios, pobres, genuínos. Reais.
Tinder implementou mas de forma muito rudimentar
2 years ago
7 comments:
O franguito, a senhora porco, grande desenho :)
Você conseguiu, de forma razoável,falar da paisagem física. E de forma pobre, preconceituosa e triste: a paisagem humana. Que pena....
Caro sevejocosilva, bem vindo ao blog!
Não pretendi, neste post, falar da paisagem física, mas apenas da humana, como é evidente. Quanto a esta última, posso garantir-lhe que, ao descrever o que vi, não o fiz movida por qualquer sentimento preconceituoso. Como poderia? As pessoas que descrevo fazem parte do MEU mundo, do MEU ambiente. Não me considero melhor ou pior que qualquer um deles. O facto de me referir a eles como sendo "feios" e "ridículos" não é aqui pejorativo. Veja, a este respeito, certos quadros da Paula Rêgo ou leia "Na tua face", de Vergílio Ferreira. Perceberá então como o grotesco pode ser belo.
Cumprimentos.
Ah, esqueci-me ainda de referir que quando quero gozar e ser preconceituosa e mazinha uso termos bastante mais fortes.
Marta, acredito em você e na sua intenção.
Reli o texto com a maior boa vontade, tentando encontrar a sua isenção, com relação a preconceito, não consegui.
Não quiz ser grosseiro no meu comentário, até agradeço a resposta, pensei que não viria.
Vou procurar o livro indicado e lê-lo.
Quem sabe nos veremos outras vezes por aqui...
severino coutinho
recife-pernambuco-brasil
Cheguei até aqui a clicar em "blogue seguinte" e aqui fiquei mais de uma hora. É bom portanto.
Olá Ruben! Bem vindo ao blog e muito obrigada pelo elogio. Tive a oportunidade de visitar os teus e só posso dizer que retribuo!*
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