Friday, May 22, 2009

A vocação consentida


" Transponho a porta e subitamente vejo tia Joana sentada num banco raso ao pé da janela. Está imóvel, tem no colo um alguidar, com a mão direita segura uma faca, com a esquerda segura um molho de couves. Deve estar a migar o caldo-verde. Mas não se move. Tem a cabeça inclinada para o trabalho das mãos, a faca meio enterrada para o molho de couves, paralisada como num instantâneo fotográfico. A luz da janela bate-a de lado, toda ela lembra um modelo de cera fixada numa posição (...)Está assim sentada, imóvel na tarde que esmorece, batida na face da luz pálida da janela. Tem um alguidar no colo, as mãos imobilizadas a cortar o caldo-verde, os olhos fixos nas mãos. Parada na eternidade, olho-a sempre, não se move."

Vergílio Ferreira, Para Sempre

Ontem, na Almedina, Isabel Cristina Rodrigues falava da vocação consentida de Vergílio e a profunda ligação que parece existir entre a sua escrita e a expressão plástica. Vergílio teria preferido ser pintor. Para mim, foi-o. Pintor sem tintas, sem pincéis. Como tela, a folha em branco. Como tema o "impintável".

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