Wednesday, November 10, 2010

O meu filho tem 20 anos e uma vida interminável. Tem olhos azuis como certas manhãs de Outono e o cabelo negro e encrespado como as serras de onde vim.
O meu filho gosta das rugas e das manchas das minhas mãos e do cheiro a lixívia e a pão da minha pele. O meu filho tem olhos azuis e não sei onde terá ido buscá-los, os meus são escuros, desbotados do tempo e do choro. Os do pai não os recordo (ou não quero), sei apenas que eram fundos como poços na sombra espessa das pestanas.
Quando o meu filho era pequeno, ria muito alto, sentava-se nos bancos da cozinha e não chegava com os pés ao chão, comia com uma colher na mão esquerda, um grande guardanapo branco atado ao pescoço, os pés baloiçando a um palmo da realidade, o olhar preso às grinaldas de frutas e flores dos azulejos,
Em que pensas, meu filho?
Sorria sem responder; nunca percebi o que lhe ia na cabeça, como agora também não percebo.
O meu filho cresceu com todos os sonhos e desejos e vontades dos homens dentro dele. Criou laços. Esperou. Amou e foi amado. Desenhou na pele linhas negras que formam desenhos misteriosos e que se parecem com as grinaldas de frutas e flores dos azulejos no interior do braço, nas costas, no tornozelo.
O meu filho cometeu erros: roubou, violou, matou, ludibriou. Porque queria sempre mais e por ser um Homem. Foi apanhado, foi julgado nas salas dos tribunais dos homens, foi encarcerado e as minhas lágrimas não comoveram ninguém.
Quando o levaram perdeu os amigos, o amor, o trabalho, as frutas e as flores e o cheiro da lixívia e do pão. Os pés sempre no chão, come com a faca à direita, o garfo à esquerda, não há desenhos nos azulejos da prisão, conforme não há sonhos nem laços.
Vou todas as semanas ver o meu filho. O meu filho que roubou, violou, matou, ludibriou. Mas que é meu: pari-o com a força e os gritos e a dor da verdade, tomei nas minhas mãos o seu corpo coberto ainda da lama do meu sangue. Olhei-o nos olhos quando não tinham cor nenhuma. E o meu filho beija-me e encosta a face à prata dos meus cabelos¬: os meus pés a um palmo da realidade, o cheiro das frutas e das flores das grinaldas nas mãos apertadas. Levo-lhe as coisas que mais gosta de comer, e notícias de quem continuou a vida sem ele, e desenhamos no calendário uma cruz: menos um dia para que o meu filho regresse aos bancos da minha cozinha.
Ontem tocou o telefone. Era para me informar que foram encontrar o meu filho com os olhos fixos nos azulejos da cela, onde colava fotografias de frutas e flores nuas, tinha um sorriso que não dizia nada acima do lençol branco que atou ao pescoço, e os pés a baloiçar a um palmo da realidade.

2 comments:

Barroso said...

Gostei muito.

marta said...

Barroso! Que saudades! Obrigada... E as tuas escritas, cadê? **